A recepção é pequena para tanta gente. Há pessoas à espera na rua, outras aguardam pacientemente nos cafés do Terreiro da Erva. Entram com sacos vazios, saem com sacos cheios. Um homem na casa dos cinquenta, enrugado pelo tempo ou pela vida, pede à funcionária um blusão quente para o Inverno. “Agora não há”. Mas a funcionária promete : “Se para a semana vier algum, fica guardado para si”. É dia de distribuição no Centro Porta Amiga de Coimbra.
“Como filosofia, a população primeira com a qual trabalhamos é a sem-abrigo”, explica Paulo Pereira, assistente social e Coordenador do Centro Porta Amiga de Coimbra da AMI. Mas nem todos os utentes da Porta Amiga representam a face extrema da exclusão social. Os que hoje aguardam na recepção não são disso exemplo. Paulo Pereira salienta : “Atendemos toda e qualquer pessoa que se encontre numa situação de carência”.
Muitos daqueles que procuram esta ajuda estão marcados pela dureza da vida, por uma «pobreza tradicional», classifica o coordenador. Mas esta situação já não é regra. Actualmente, a maioria das pessoas que recorre ao centro já não faz parte da «pobreza e exclusão tradicionais». São pessoas como nós. «Novos pobres». Agora, todas as lógicas de intervenção social têm de ser readaptadas.
Raquel faz parte desta «nova classe». Entra cheia de pressa. Só pôde vir agora, teve de faltar às aulas do curso. Mostra a identificação e assina uma folha na recepção. Uma funcionária traz-lhe três caixas cheias. Vem buscar a parte de géneros alimentares a que tem direito esta semana.
No dia em que Raquel chegou à Porta Amiga em Coimbra, tal como todos os outros utentes, foi recebida por uma assistente social. Paulo Pereira deixa a questão: “E se um dia fôssemos nós a viver na rua, será que nos saberíamos mexer dentro dessa subcultura?”. A ilustração na nossa mente pretende que cheguemos à mesma conclusão que o coordenador: “Pedir pela primeira vez é sempre muito complicado”. A ajuda é prestada consoante as necessidades de cada um. O coordenador explica: “O centro assenta em duas lógicas de apoio: intervenção às necessidades básicas e serviços de apoio social, médico e jurídico”. Cada utente possui um processo onde é feita a listagem de todos os serviços dos quais vai usufruir.
Há pouco, muitos destes utentes acabaram de almoçar. O refeitório é pequeno, com uma capacidade que ronda as doze pessoas. É o “Restaurante do Coração”, um dos serviços que proporciona uma das necessidades mais básicas: alimentação. Mas só funciona ao almoço. De resto, o centro vai fornecendo géneros alimentares “conforme a necessidade”. Mas isso só serve àqueles que podem cozinhar em casa.
Não é o caso daqueles que fizeram da rua a sua morada. De dia, andam por aí alienados. Nós, sociedade, temos tendência para não os ver. “É a cegueira louca das pessoas”, define o assistente social, “é talvez o medo de um futuro”. Nas noites de Coimbra, oito instituições trabalham articuladamente na intervenção social com os sem-abrigo. “Há uma equipa de rua que todas as noites passa pelos locais onde eles estão, tenta motivá-los para a mudança, para aceitarem alojamento”, explica Paulo Pereira: “É o trabalho que não mostra resultados tão rapidamente”.
Estes «pequenos-grandes» trabalhos deveriam ser sempre recompensados. Mas nem sempre é assim. “Vai-se conseguindo alguma melhoria das condições de vida, alguma reinserção social”, afirma o coordenador, “mas, infelizmente, muitas das vezes, as pessoas voltam à situação inicial, não conseguem estar ao nível da normalidade imposta pela pressão social”.
Na recepção, entra agora um rapaz novo que aguardava na rua. Apenas quer confirmar a sua presença na Festa de Natal. É o próximo «pequeno-grande» evento realizado pela AMI. Um lanche no apertado refeitório do centro, com prendas para as crianças e cabazes de comida e roupa para os adultos.
Enquanto o rapaz dá o seu nome para a lista de presenças na festa, uma senhora abre a porta e pousa um saco cheio de roupa. Ao virar costas fica somente um “Feliz Natal”. A funcionária abre o saco. Mexe, remexe. Encontra um blusão, quente para o Inverno. Ainda na recepção, o homem marcado pela dureza do tempo ou da vida, reclama “Esse não, não é quente o suficiente”. O outro continua então prometido. Para a semana.
Já tem o seu saco na mão. Cheio. Hoje, nada mais há a fazer ali. “Venho então cá para a semana”, despede-se. E sai. Para trás dele, fica uma recepção ainda cheia com pessoas de sacos vazios que esperam a sua vez. E nas suas costas bate a porta onde se pode ler «A AMI enfrenta um Mundo que mais ninguém quer ver». Cegueira louca.
Vânia Furet
3º Comunicação Social
quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
Uma porta sempre aberta
às
19:02
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